ana caco

Com o desafio de tornar o conhecimento científico acessível sem cair em fórmulas reducionistas, pesquisas acadêmicas são transformadas em projetos audiovisuais. Sociólogos, antropólogos e médicos têm investido no diálogo com profissionais da área do cinema para desenvolver filmes que comunicam os resultados de estudos por meio de recursos que envolvem a exploração de subjetividades e experiências individuais.

Pesquisador de temas como violência e segurança pública desde os anos 1980, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, que foi professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), escreveu livros que derivaram em filmes de ficção: os dois volumes de Elite da tropa, sendo o primeiro publicado pela Editora Objetiva, em 2006, e o segundo pela Nova Fronteira, em 2010. Soares, que também foi coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2000, e secretário nacional de Segurança Pública, em 2003, entre outros cargos públicos, sentia a necessidade de ampliar o alcance de seus estudos. “Os resultados de minhas pesquisas ecoavam entre grupos de pesquisadores, mas eu queria sensibilizar a sociedade de forma mais ampla sobre os problemas da polícia e combater uma visão do senso comum que confunde justiça com vingança”, conta Soares.

Entre 1995 e 1997, o antropólogo realizou um estágio de pós-doutorado com o filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007), que olhava criticamente para a capacidade de tratados filosóficos e sociológicos de colaborar com a construção de sociedades mais justas e igualitárias. “Rorty sustentava que o jornalismo, o documentário, o teatro e a ficção são mais eficazes para cumprir com essa tarefa, na medida em que oferecem a possibilidade de gerar empatia por meio do deslocamento de imaginários e da mobilização de afetos”, relata Soares.

Com essas ideias em mente, em 2004, o antropólogo começou a criar uma trilogia sobre violência e segurança pública, fundamentada em pesquisa empírica, mas visando um público para além do acadêmico. “Uma das diretrizes era evitar análises que utilizassem categorias e conceitos específicos das ciências sociais e investir na construção de um texto fluente”, recorda. Como parte da iniciativa, Soares publicou Cabeça de porco (Objetiva, 2005), escrito em parceria com o rapper MV Bill e o ativista social e produtor Celso Athayde. O livro, que conta a história de adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas, teve os direitos de uso vendidos para uma produtora e parte dele foi convertida no documentário Falcão: meninos do tráfico, em 2006.

Já no segundo volume da trilogia, Elite da tropa, Soares mergulha no universo policial do Rio de Janeiro. O livro foi escrito em parceria com os policiais André Batista e Rodrigo Pimentel, do Batalhão de Operações Especiais (Bope), força de operações especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. No mesmo período, o cineasta José Padilha também criava um filme sobre a polícia e ambos começaram a trabalhar juntos. “Nossa proposta era falar sobre a polícia partindo da subjetividade dos profissionais”, comenta.

Assim, a história de Batista, que estudava direito de dia e trabalhava no Bope à noite – mesmo sendo crítico à violência –, foi o conflito-chave que impulsionou o desenvolvimento dos trabalhos. Lançado em 2007, o filme Tropa de elite, assim como o livro, baseia-se em situações reais, embora os nomes dos envolvidos tivessem de ser trocados para evitar situações de vingança ou sua transformação em denúncia judicial. “O livro vendeu 200 mil exemplares, enquanto o filme foi visto por 13 milhões de espectadores, uma das maiores audiências do cinema brasileiro”, afirma o antropólogo. O segundo volume do livro e a sequência do filme foram criados a partir de inquéritos sobre milícias pesquisados por Soares e também envolveram a participação de Cláudio Ferraz, à época delegado da Polícia Civil, responsável por coordenar investigações que levaram 500 milicianos à prisão.

Pesquisador de violência, mercados ilegais, segurança pública e do Primeiro Comando da Capital (PCC) desde o mestrado, financiado pela FAPESP, o sociólogo Gabriel Feltran, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), publicou Irmãos – Uma história do PCC (Companhia das Letras, 2018), para narrar a história da facção a partir de relatos em primeira pessoa coletados em seus estudos. Assim como Soares, ao utilizar resultados de pesquisas realizadas nos últimos 20 anos, Feltran queria levar suas reflexões para públicos além do universitário. “O livro repercutiu muito e eu pensava, com ele, encerrar a etapa de pesquisa sobre o PCC. No entanto, fui procurado por uma produtora interessada em adaptar a obra”, afirma.

Vendido para o canal HBO Max, o projeto foi transformado em uma série documental de quatro episódios, com o título PCC: Poder secreto. “O trabalho mostra a história do PCC por meio de relatos em primeira pessoa, incluindo anônimos que falam sobre sua atuação nas periferias e fundadores do grupo, além de autoridades jurídicas e policiais”, diz o pesquisador, lembrando que muitos dos personagens foram seus interlocutores em diferentes estudos acadêmicos. “Os episódios se organizam em ordem cronológica, sem narrador ou explicações de sociólogos, como forma de explicitar o ponto de vista de quem viveu na carne a presença do PCC, o que aproxima a série de um trabalho etnográfico”, propõe Feltran. Formalmente, o sociólogo trabalhou como coordenador de pesquisa e consultor, fazendo parte de uma equipe composta por mais de 60 pessoas. “A intenção foi produzir um debate público sobre o PCC e avaliamos que a linguagem documental era o melhor caminho, na medida em que a ficcional poderia sugerir que algumas histórias eram inventadas”, justifica, lembrando que a série ficou em primeiro lugar dentre as mais vistas no HBO Max durante semanas.

Também com a premissa de que a história desvelada por seu doutorado, realizado entre 2006 e 2011 na Unicamp, precisava ser contada por meio de um projeto documental, o historiador Sidney Aguilar Filho, que faz estágio de pós-doutorado na mesma instituição, vendeu os direitos de filmagem de seu estudo. No contrato firmado com a produtora, o pesquisador incluiu uma cláusula exigindo que o filme teria de ser fiel aos argumentos e achados da pesquisa de doutorado e não utilizar cenas ficcionais. O projeto de doutorado com a pesquisa que levou ao documentário teve início quando Aguilar era professor de educação básica em São Paulo. Durante uma aula sobre nazismo, uma aluna relatou que tijolos com o símbolo da suástica tinham sido desenterrados da fazenda de sua família, no interior do estado.

Intrigado com a informação, o historiador realizou estudos em diferentes arquivos e coletou depoimentos, descobrindo a história de empresários ligados ao pensamento eugenista, incluindo integralistas e nazistas, que em 1930 removeram 50 meninos de um orfanato do Rio de Janeiro e os levaram até a Fazenda Santa Albertina de Osvaldo Rocha Miranda, em Campina do Monte Alegre, em São Paulo. No local, as crianças foram submetidas a trabalhos forçados, castigos físicos e humilhações. “Identifiquei documentos assinados por juízes autorizando a saída dos meninos do orfanato e registrando sua chegada no sítio, que mostram que os eventos aconteceram dentro da legalidade”, sustenta. Aguilar Filho explica que esses documentos indicam que as crianças poderiam ser levadas à fazenda desde que recebessem cuidados e frequentassem a escola, algo que acabou não acontecendo.

O estudo originou o documentário Menino 23 – Infâncias perdidas no Brasil, lançado em 2016 e que ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria longa-metragem documentário, no ano seguinte. Para redigir a tese em que se baseou o filme, Aguilar identificou um órfão sobrevivente, Aloísio Silva, que vivia próximo ao local da fazenda e se dispôs a falar. Porém, com o andamento das filmagens e a partir de pesquisas nos arquivos da Marinha, foi localizado um segundo sobrevivente, Argemiro Santos, servidor aposentado da instituição militar. Santos fugiu da fazenda aos 14 anos e foi menino de rua até se alistar na Marinha para lutar na Segunda Guerra Mundial. O historiador também conseguiu encontrar familiares de um terceiro sobrevivente, já falecido, à época. “Os sobreviventes e suas famílias esconderam a história por 70 anos. Eles levaram décadas para se convencer de que aqueles eventos deveriam se tornar públicos”, diz.

Segundo ele, um dos desafios da tese e do documentário foi coletar memórias muito antigas, trabalho que ele associa com práticas arqueológicas. “A memória funciona como a arqueologia. Depois de desenterrar uma peça antiga, ela começa a se desfazer”, compara, assegurando que, por causa disso, os primeiros depoimentos costumam retratar de forma mais fiel os acontecimentos reais. No começo, Aguilar Filho queria que o documentário abordasse mais questões históricas e entrasse menos na memória de personagens, mas a produtora insistiu que os relatos em primeira pessoa funcionariam melhor em filme. “Depois, eu vi como eles estavam certos. Contar a história por meio de relatos de personagens reais é uma forma eficaz de sensibilizar as pessoas”, assegura o pesquisador, que doou parte dos documentos utilizados na pesquisa e no documentário ao Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp. Em 2021, o historiador publicou um livro compilando os achados de suas pesquisas envolvendo a vida dos órfãos na Fazenda Santa Albertina.

Pesquisadora de migrações internacionais, a historiadora Mônica Raisa Schpun, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, realizou estudo sobre as migrações cruzadas e a amizade de Aracy de Carvalho (1908-2011), funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha, com a judia Margarethe Levy (1908-2011). Carvalho foi chefe do setor de passaportes de 1935 a 1941, ocupando uma posição-chave em um momento em que judeus começaram a buscar refúgio em outros países, incluindo o Brasil. Seguindo o itinerário de um grupo composto por 16 pessoas que foram ajudadas pela funcionária brasileira, Schpun pesquisou em arquivos da Gestapo, polícia secreta da Alemanha nazista, na documentação pessoal de Carvalho, hoje armazenada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), entre outros acervos.

Levy foi uma das pessoas ajudadas por ela e conseguiu embarcar para o Brasil com o marido, em 1938. Em 1942, Carvalho também voltou ao Brasil junto com seu namorado à época, o cônsul-adjunto e escritor Guimarães Rosa (1908-1967). No país, as duas se reencontraram e se tornaram amigas. “Como não teve filhos, Levy passou a receber cuidados do filho de Carvalho, Eduardo. A amizade delas durou sete décadas”, conta a historiadora. Schpun explica que Carvalho foi reconhecida como Justa em 1982, título concedido pelo instituto Yad Vashem, em Jerusalém, Israel, para não judeus que salvaram judeus de perseguições nazistas. Nas Américas, existem seis Justos reconhecidos, sendo três norte-americanos, uma chilena e dois brasileiros. No mundo, são cerca de 29 mil.

A pesquisa de Schpun deu origem ao livro Justa. Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: Trocando a Alemanha nazista pelo Brasil (Civilização Brasileira, 2011), que teve seus direitos vendidos para a Rede Globo, em 2018. No ano passado, a obra serviu de base para a criação de uma série ficcional de oito episódios. Apesar do formato escolhido ter sido o de ficção, no final de cada capítulo descendentes de pessoas que foram salvas por Carvalho relatam suas histórias reais. Enquanto o livro vendeu mais de 8 mil exemplares, a série televisiva atingiu 2 milhões de espectadores, conforme dados do Ibope. “É um patamar inalcançável para um livro universitário”, destaca a historiadora, mencionando que a cadeia franco-alemã Arte está produzindo um documentário sobre a história de Carvalho, que deve ser lançado em 2022, também a partir da história resgatada em suas pesquisas. Segundo ela, a Globo se associou à Sony International para produzir a série, que já foi veiculada em países como Índia, Espanha e Reino Unido. “A ficção traz a possibilidade de causar impactos afetivos e suscitar empatia, especialmente entre pessoas que não têm familiaridade com determinadas realidades, algo que o texto acadêmico não faz”, avalia.

Especialista em estudos sobre Juscelino Kubitschek (1902-1976), o economista, historiador e político Ronaldo Costa Couto considera que as histórias e achados de estudos científicos devem oferecer elementos para suscitar emoções nas pessoas, quando vertidos para a linguagem audiovisual. “Para interessar produtoras e canais de televisão, as pesquisas precisam oferecer a possibilidade de criação de boas cenas e diálogos”, avalia Couto, autor de pelo menos uma dezena de livros e colaborador de mais de 10 obras para o cinema e a televisão. Um de seus livros mais conhecidos que derivou em série televisiva de ficção foi Brasília Kubitschek de Oliveira (Editora Record, 2002), publicado no centenário de nascimento do político. Couto vendeu os direitos da obra para a Rede Globo e participou da criação do projeto como consultor. Atualmente, ele negocia os direitos de outra obra que deve virar projeto audiovisual: Matarazzo: A travessia (Planeta, 2004), resultado de cinco anos de pesquisas realizadas no Brasil e na Itália.

Já no campo da saúde coletiva, o audiovisual também tem sido visto como ferramenta para difundir políticas públicas. Essa é a visão do médico Ricardo de Sousa Soares, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que desenvolveu pesquisa sobre o programa Mais Médicos, entre 2018 e 2022. No período, ele visitou 14 cidades do interior da Paraíba para conhecer os impactos do programa na vida das pessoas. Dois artigos científicos foram publicados com os resultados do estudo, evidenciando que a presença do Mais Médicos está relacionada estatisticamente com a redução na mortalidade por causas evitáveis nas cidades estudadas. A pesquisa combina informações estatísticas coletadas em bases do Ministério da Saúde com dados qualitativos, sendo que os artigos científicos se centram nos resultados quantitativos, enquanto parte dos achados qualitativos foi retratada no documentário + Médicos, lançado no final de 2019 por meio de uma parceria entre os departamentos de Comunicação e Promoção da Saúde da UFPB.

Soares explica que o filme dialoga com os resultados estatísticos, ao mostrar, por exemplo, a história de um médico cubano que atuava no programa. No documentário, o profissional conta que quando pactuou os objetivos com os coordenadores do programa Mais Médicos, foi estipulado que seria aceitável registrar até uma morte infantil no município, a partir de sua chegada. “Em resposta, o cubano afirma que queria pactuar que não houvesse sequer um óbito de criança”, relata Soares. O filme também mostra personagens valorizando a ampliação do atendimento, com médicos disponíveis todos os dias nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), além de outros realizando visitas domiciliares, informação que explica a redução da mortalidade por causas evitáveis nas cidades pesquisadas. Publicados em setembro de 2020 e agosto de 2021, os artigos científicos registravam cerca de 3 mil acessos, até agosto de 2022. “Já o vídeo foi ao ar recentemente no YouTube e, em menos de 10 dias, registrou mais de 600 visualizações”, compara o médico.

Por fim, a médica infectologista Helena Lemos Petta (ver Pesquisa FAPESP n° 309), pesquisadora do Centro de Estudos Latino-americano Rockfeller Center na Universidade Harvard, criou para o canal de televisão por assinatura Universal TV a série de ficção Unidade Básica (foto), baseada em casos reais, que mostra o cotidiano de uma UBS na periferia de São Paulo. A primeira temporada foi ao ar em 2016 e agora a autora finaliza os roteiros da terceira. Petta analisa que a série fomenta debates sobre os limites do discurso biomédico ao retratar o cotidiano de personagens que promovem uma abordagem ampliada do cuidado na saúde, incluindo a compreensão das condições de vida de seus pacientes. Durante a criação da série, Petta desenvolveu tese com financiamento da FAPESP para aprofundar os conhecimentos entre as relações do campo da saúde coletiva e da linguagem audiovisual. “Na tese, argumento que produções audiovisuais oferecem a possibilidade de utilização de uma estética afetiva que colabora para gerar engajamento com temas da saúde coletiva”, conclui.

Fonte: Revista Pesquisa Fapesp

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