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Em 1978, Neuza Maria Frazatti, bióloga e doutora em Biotecnologia pela Universidade de São Paulo, chegava ao Instituto Butantan como voluntária para trabalhar com a vacina contra o vírus influenza. De origem italiana e criada ao redor de educadores, ela já seguia o caminho da família e trabalhava como professora do ensino médio, além de se dedicar à alfabetização de adultos. Mas ela queria mais: uma atividade que lhe possibilitasse ajudar um número ainda maior de pessoas. A paixão pelos laboratórios a fez prestar o concurso de biologista em 1980 e, quatro anos mais tarde, passou no concurso para pesquisadora científica do Butantan. Aposentou-se em 2005, mas continuou sua carreira de pesquisadora contratada pela Fundação Butantan, onde permanece até hoje. Sua atuação foi fundamental para o desenvolvimento da vacina da dengue, que se encontra na fase final de ensaios clínicos e mostrou grande potencial para combater esse problema de saúde pública.

Neuza, que é atualmente gerente de projetos do Laboratório Piloto de Vacinas Virais, foi responsável por implementar no Butantan, no início dos anos 2000, a tecnologia que, anos mais tarde, seria utilizada para produzir o imunizante contra a dengue. Para minimizar o uso de animais nas pesquisas, ela e sua equipe estabeleceram a produção de vacinas e antígenos virais em células Vero, uma linhagem celular isolada de rim de macaco africano. O primeiro produto feito nessas células foi a inédita vacina contra a raiva em meio livre de soro, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2008, que lhe rendeu o Prêmio Péter Murányi-Saúde dois anos depois.

“Já existia uma vacina contra a raiva desenvolvida no Butantan disponível no mercado, que era produzida em tecido cerebral de camundongos lactentes [recém-nascidos]. Nós mostramos que não somente era possível produzir o imunizante em células cultivadas em meio livre de soro, como essa estratégia teria um custo reduzido e um rendimento de vírus cinco vezes maior”, conta Neuza. A produção passou para larga escala, em biorreatores, e a vacina chegou a ser utilizada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI). O grupo também desenvolveu a versão veterinária do produto e ambas foram patenteadas. Além disso, foi desenvolvida uma vacina pentavalente contra o rotavírus usando a mesma plataforma.

Com a explosão de casos de dengue no Brasil em 2010, quando o indicador triplicou em relação a 2009, todos os esforços se voltaram para desenvolver a primeira vacina contra a doença. Foi quando o Butantan assinou um acordo com o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) para receber as cepas dos quatro vírus da dengue atenuados. Neuza liderou os estudos para a produção do imunizante na plataforma de células Vero, que já estava consolidada em seu laboratório. “Tivemos várias reuniões com o NIH e trabalhamos a todo vapor, dia e noite – para nós, não existia sábados, domingos ou feriados. Eu comecei com uma equipe pequena, que foi crescendo e chegou a mais de 50 pessoas. Em quatro anos, finalizamos a formulação da vacina e entramos na fase 2 do estudo clínico.”, diz.

Por precisar conter os quatro sorotipos da dengue (DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4) para uma proteção completa, a formulação da vacina foi uma tarefa de grande complexidade. Foi preciso estudar separadamente cada cepa, desde a inoculação dos vírus nas células à coleta, concentração, purificação, formulação e liofilização – processos que afetam os títulos virais. Depois de 270 experimentos e 50 tentativas de formulação, os cientistas chegaram à versão final. “Cada monovalente que compõe a vacina perdia uma quantidade de carga viral diferente ao longo do processo. Então foi preciso estipular para cada vírus qual a quantidade ideal a ser inoculada nas células, qual o período de incubação e o momento certo de coletar, para que na formulação final os quatro tivessem exatamente a mesma concentração”, explica a pesquisadora.

Todo esse trabalho está rendendo os seus frutos. Após mostrar bons resultados nos 300 participantes da fase 2 do estudo clínico, o imunizante já está na reta final da fase 3, que acompanha cerca de 16 mil pessoas de todo o Brasil desde 2016. Em dados divulgados neste mês, a vacina apresentou uma eficácia de quase 80% para proteger contra a dengue.

Para a cientista, a sensação é de um dever cumprido. Presa a um mural em seu laboratório, há uma foto do dia em que o primeiro voluntário da fase 2 recebeu a vacina no Brasil, no final de 2013. Uma lembrança do começo de um sonho que está cada vez mais próximo de se tornar realidade. Casada, mãe de Marina e Daniel e com duas irmãs, sendo uma delas sua gêmea, Neuza vê com alívio a chance de poder proteger a sua família e a de tantas outras pessoas.

Reconhecimento

Recentemente, em 2021, a contribuição de Neuza à ciência foi reconhecida com o prêmio Women in Life Sciences, da associação farmacêutica internacional Parenteral Drug Association. Anualmente, o comitê agracia mulheres dedicadas à pesquisa, indústria, educação e ciências da vida, e busca incentivar outras mulheres a seguirem esse caminho. A cientista, que coordena uma equipe repleta de mulheres em cargos de liderança, acredita que esse é um passo importante para mostrar o valor do trabalho feminino. “Esse prêmio não é só para mim, e sim para todas as cientistas brasileiras e para todas as mulheres. Nós sofremos muita discriminação a vida toda. Muitas vezes, as pessoas não te olham realmente como uma profissional.”

A pesquisadora já havia recebido, em 2013, a Medalha “Instituto Butantan”, concedida a personalidades que contribuem para o engrandecimento da instituição e para o progresso das Ciências Biomédicas, instituída pelo governo do Estado de São Paulo. Em 2016, foi homenageada com a Medalha “Alba Lavras” da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), voltada para pesquisadores que se destacaram cientificamente nas atividades-fim dos Institutos de Pesquisa, pelo desenvolvimento, melhoramento e produção de vacinas virais.

Como educadora e cientista, Neuza sente que cumpre sua missão diariamente, tanto na sala de aula como no laboratório. Inclusive, prefere ser chamada de professora do que de doutora. Para ela, o ensino ajuda na formação de caráter das pessoas, e é uma oportunidade de repassar conhecimentos e experiências. E fazer ciência é uma oportunidade de salvar vidas. “Eu tento passar isso para os meus alunos e minha equipe: que todos somos iguais e o trabalho e a dedicação de cada um tem o seu valor no resultado final de um projeto.”

Fonte: Instituto Butantan

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