Crianca bebe agua

Os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário (DHAES), até ser expresso de forma explicita, sempre esteve presente em vários instrumentos legais, mas sempre apareceu como derivado de outros direitos definidos em documentos das Nações Unidas e na Constituição brasileira.

Considerando essa derivação a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, observamos que o artigo 25.1 diz: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar…”.

Não nos parece que seja possível desfrutar de saúde e bem-estar sem garantia de acesso pleno à água e ao esgotamento sanitário.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 16 de dezembro de 1966, que passou a vigorar em 1976, traz em seus artigos pactos que podemos associar à questão do direito humano à água.

O artigo 6º, que trata da questão do trabalho, diz: “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem em especial: ‘.. b) condições de trabalho seguras e higiênicas’. Não haverá condições higiênicas se não for garantido acesso a água limpa e instalações sanitárias adequadas”.

E o artigo 11. 1 diz: “…direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e habitação suficientes bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência….”.

Poderíamos citar vários outros documentos da ONU que apresentam de forma derivada os DHAES.

Mas, foi com o Comentário Geral nº15, do Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do ano 2002, que o direito ao acesso à água potável surge de forma explícita.

Logo na introdução do Comentário afirma-se que “a água é um recurso natural limitado e um bem público fundamental para a vida e para a saúde”.

Vai além, ao dizer: “O direito humano à água é indispensável para uma vida condigna e constitui um pressuposto da realização de outros direitos humanos”.

O Comentário Geral nº15 possibilitou a elaboração de uma proposta de resolução sobre o direito humano à água. Essa primeira proposta foi apreciada no ano 2008 e rejeitada.

É reapresentada, em 2010, pelo governo da Bolívia e aprovada por 122 votos favor e nenhum voto contra; 41 países se abstiveram.

O Brasil foi um dos signatários favoráveis ao documento, e em 28 de julho daquele ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas declara “que o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico são direitos humanos fundamentais”. A resolução recebeu o número A/RES/64/292.

Na Constituição Brasileira de 1988 não há menção explícita ao direito humano à água e ao esgotamento sanitário, porém, o inciso XX do artigo 21 diz que compete à União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”; o artigo 23 diz em seu inciso IX que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. O artigo 200, item IV, diz que “compete ao sistema único de saúde participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico”.

Tramitam no Congresso Nacional propostas de Emenda Constitucional (PECs) que dão nova redação aos artigos 5º e 6º da Constituição Federal, para incluir o acesso à água como direito.

É nessa esteira que o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) lançou em dezembro do ano passado a Campanha Sede Zero, que já conta com apoio e participação de quase uma centena de entidades ligadas a movimentos sociais e populares.

O Manifesto de lançamento apresenta nove pontos a serem considerados pelos prestadores dos serviços de saneamento, na perspectiva da garantia dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, entre os quais se destacam (i) a implementação da tarifa social de água e esgoto como direito “automático” para famílias inscritas no Cadastro Único dos Programas Sociais e com membros recebendo Benefício de Prestação Continuada; (ii) a priorização do acesso aos serviços, com a execução gratuita das ligações de água e de esgoto e das próprias instalações sanitárias domiciliares, das residências das famílias; e (iii) a disponibilização de água para consumo e higiene pessoal e sanitários para população em situação de rua.

Ao manifesto, que propôs a Campanha, incorporou-se um conjunto de emendas à Lei Nacional de Saneamento 11.445, de 2007, com o objetivo de que se observe na prestação dos serviços o conteúdo normativo dos DHAES: disponibilidade; acessibilidade física; acessibilidade econômica; aceitabilidade; qualidade e segurança, bem como os princípios dos direitos humanos: igualdade e não discriminação; acesso à informação; participação, responsabilização e sustentabilidade.

Destaca-se, porém, que medidas como as propostas no Manifesto e nas emendas à lei nacional, só se efetivarão com o fortalecimento do papel do Estado na provisão dos serviços, ou seja, o processo de privatização imposto pelo atual governo através da Lei 14.026, de 2020, em hipótese alguma garantirá a aplicação dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário, na medida em que a busca pelo lucro é incompatível com o conteúdo normativo e os princípios dos DHAES.

E as empresas estaduais de saneamento, em especial as concessionárias estaduais, presentes em mais de 70% dos municípios brasileiros, devem ter como prioridade o atendimento da população pobre e em processo de vulnerabilidade, que são aquelas que ainda não têm acesso aos serviços de saneamento básico.

No caso daquelas empresas que negociam ações na Bolsa de Valores, a prioridade deve ser essa população e não o interesse dos acionistas.

Só assim viveremos num país em que, todas as pessoas, independentemente da capacidade de pagamento e do local e das condições de moradia, terão acesso aos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e destinação adequada dos resíduos sólidos e uma política de drenagem urbana adequada.

Chamamos a atenção para a importância das próximas eleições. Tanto o executivo quanto o parlamento que se elegerem terão papel fundamental nas decisões que levarão à realização ou à violação dos DHAEs.

Edson Aparecido da Silva é sociólogo, mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC (Universidade Federal do ABC), assessor de Saneamento da FNU (Federação Nacional dos Urbanitários) e secretário executivo do Ondas (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento).

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