meio ambiente

O Brasil precisa investigar os efeitos devastadores do backlash (retrocesso civilizatório) que vem sofrendo, especialmente em relação às instituições ambientais governamentais, que estão sendo atingidas por atrasos normativos e operacionais.
Esse processo ocorre hoje no Brasil no governo de Jair Bolsonaro, repetindo o que ocorreu nos EUA na gestão de Donald Trump. Naturalmente esses retrocessos não ocorrem de graça. Visam beneficiar setores econômicos, livrando-os dos critérios de proteção ambiental.
Minar as instituições ambientais é uma tarefa que exige algum preparo, especialmente jurídico, para evitar o flagrante delito. Por exemplo, para “passar a boiada” (expressão usada no Brasil pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles), é preciso um suporte de pareceres que aparentem justificativa e motivação.

É necessário ainda nomear facilitadores competentes para este serviço, colocando-os em postos-chaves de comando, obedecendo um cronograma de desmantelamento e desarticulação das organizações públicas com vistas ao resultado que se pretende obter, que normalmente é chamado de desmonte ambiental.

Isso não vem ocorrendo apenas com o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), mas em muitos estados da federação. São Paulo está sofrendo um duro ataque em seu Sistema Ambiental Paulista. Por ser um espaço territorial privilegiado em termos de tecnologia e conhecimento, o desmantelamento das instituições em São Paulo exige grau maior de sutileza, que obviamente a gestão bolsonarista não tem.
Enquanto a área federal atrelava o Ministério do Meio Ambiente à tutela de representantes oriundos do agronegócio, em São Paulo essa tendência funcionou como um mix de interesses econômicos variados, que envolveram, além do ruralismo de perfil mais atrasado, interesses do setor industrial e da especulação imobiliária. Em São Paulo, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente foi reduzida a uma subsecretaria, ligada ao setor de infraestrutura. Importante lembrar que Ricardo Salles fez seu estágio para ministro como secretário estadual do Meio Ambiente em São Paulo.

Há de se perceber que o desmantelamento das estruturas ambientais nas diferentes unidades da federação decorre da existência de orientação menos progressista dos governos de plantão, que resistem em menor ou maior grau diante da intensa pressão das forças do business as usual, dos negócios como sempre foram, com lastro em uma cultura colonialista e exploratória.

Os promotores do backlash precisam cuidar das aparências, ou a identificação do desmonte levará à indícios de corrupção, da prática de advocacia administrativa, de favorecimento a interesses setoriais em detrimento da coisa pública. Se houver mecanismos de controle social em funcionamento, interna ou externamente à instituição, o ato de facilitação certamente será identificado.

Os ataques aos sistemas ambientais federal e do estado de São Paulo foram bastante similares. Instrumentalizar e neutralizar os mecanismos de controle social, como Conama e Consema/SP, foram prioridades iniciais. Em São Paulo o desmantelamento democrático do Consema se deu de modo gradual, ao longo de mais de uma década.

A composição do Conama e do Consema/SP encontra-se hoje sub judice. Os casos apresentam aspectos assemelhados. Danos regimentais e intervenções nas representações do movimento ambiental estão presentes e em ambos os casos o cadastro das entidades ambientalistas foi descaracterizado. Sua gestão passou a ser uma tarefa apenas do governo, sem participação do segmento ambiental.
Na área federal, a eleição de representantes ambientalistas no Conama se dá agora por meio de um bingo, um mero sorteio, o que é notoriamente fator desagregador, com perdas de representatividade e legitimidade. No Consema de São Paulo, a gestão do cadastro de entidades pela Subsecretaria do Meio Ambiente, sem controle social, permitiu a intrusão de outros segmentos. Além disso, alterações regimentais suprimiram o direito do conselheiro ao pedido de vistas durante as plenárias, além de cercear o tempo de contraposição técnica em audiências públicas.

Ao mesmo tempo, com controle estatal sobre a composição e funcionamento do Consema, caiu o rigor do licenciamento. Metodologias que exigiam precisão de dados aos empreendedores na avaliação de impactos ambientais foram abandonadas. Hoje a apresentação de dados vitais para a avaliação de viabilidade ambiental de um empreendimento pode ser remetida para fase posterior ao licenciamento pelo Consema, com total perda de transparência e controle social.

Uma moção pela reconstrução do Consema, assinada por centenas de entidades ambientalistas, foi encaminhada ao Ministério Público do Estado de São Paulo nos seguintes termos: “Em função dos fatos relatados, entendemos que medidas corretivas são urgentes, objetivando que sejam alijadas do Consema as perdas democráticas. É preciso reconstruir este espaço democrático na plenitude de sua representação social, para que cumpra sua missão na discussão e promoção de políticas públicas ambientais para o Estado de São Paulo”.

O segundo ponto do desmantelamento ambiental federal e paulista se deu na área da pesquisa científica. Enquanto na área federal a estratégia foi retirar a representação da ciência do Conama (SBPC) e asfixiar economicamente a pesquisa, em São Paulo foram extintos os centenários institutos de pesquisa Florestal, de Botânica e Geológico. Segundo as primeiras tentativas nesta extinção, há registro documental de que as abordagens técnicas do Instituto Florestal “atrapalhavam” o agronegócio.

Já a perda normativa na área federal é gritante. As normas infralegais, como decretos, resoluções, portarias e instruções normativas, estão dilacerando o Sisnama. Recentemente, o ICMBio sofreu dura interferência de seu procurador-chefe, que buscou impor, por meio de Orientação Jurídica Normativa, restrições à exigência de compensações ambientais. Concomitantemente, o Ibama foi denunciado em razão da quase completa paralisação no sistema de instrução e julgamento de processos de multas ambientais, revelando ainda uma política de cerceamento de informações ao público interno e externo.

As consequências da impunidade decorrente da falta de execução de multas ambientais tem sido um estímulo à criminalidade, assim como a inanição econômica dos meios de fiscalização. Os números da devastação da Amazônia atestam um Estado de Coisas Inconstitucional, conforme afirmou a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. O que se pleiteia é a retomada da normalidade com o adequado funcionamento do Poder Judiciário.

A ilegalidade campeia solta. No Estado de São Paulo, o processo de concessões de parques e unidades de conservação apresentam vícios intransponíveis, caracterizados por episódios de cerceamento da participação social, como ocorre no PETAR (Vale do Ribeira), um complexo notável em biodiversidade e patrimônio espeleológico com aproximadamente 400 cavernas.

Sobre essa concessão, uma moção assinada por duas centenas de pesquisadores e instituições afirma: “Considerando que a concessão para a iniciativa privada de um bem público de importância social coletiva é um modelo inadequado, desvinculado das características socioeconômicas e o modo de vida da população local que atua no setor de turismo, que é a base econômica de sua sobrevivência…”

O alijamento da comunidade regional, que abriga população quilombola, para atuar como monitores independentes no complexo de ecoturismo que eles mesmos criaram ao longo de sessenta anos, assim como a falta de uma consulta adequada sobre critérios para a concessão, tornou a situação do PETAR gravíssima.

Diante do absurdo das restrições impostas à comunidade, defendida em reunião por representante da Fundação Florestal da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, vale a pena citar Carl E. James, professor de Educação na York University, de Toronto, no Canadá: “A sociedade é estruturada de maneira a excluir um número substancial de minorias da participação em instituições sociais. Por muito tempo imperceptível, essa forma de racismo tende a ser de tamanha dificuldade de percepção tendo em vista um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas enraizadas em nossa cultura, promovendo, direta ou indiretamente, segregação e preconceito racial”.

Os danos são estruturais e vão muito além da atualidade. Os riscos da emergência climática em nossa realidade contemporânea não encontram respostas eficazes dentro desses sistemas ambientais neutralizados. Estamos perdendo o precioso tempo que nos resta para prevenir vulnerabilidades climáticas e poupar vidas.

O backlash brasileiro e paulista, para ser enfrentado com vistas à sua reconstrução, precisa ser estudado em dois aspectos primordiais: a identificação dos danos normativos e operacionais e suas consequências, assim como os danos causados às organizações com relação à sua funcionalidade, o que inclui a perda de comprometimento dos agentes públicos com os objetivos das organizações estatais.

Note-se que no segundo ponto há um universo a ser explorado, que é a desarticulação interna, proposital, com a remoção de quadros que se tornaram incômodos aos olhos dos facilitadores econômicos. De outro lado ocorre o desaquecimento funcional, pelo fato de funcionários enfrentarem um clima hostil quando no bom desempenho de suas funções.

Na ausência de condições saudáveis, surge o fenômeno do burnout, ou desaquecimento funcional. Há de se averiguar, por exemplo, os efeitos provocados sobre o corpo funcional da pesquisa científica ambiental paulista em função da destruição das condições de trabalho e das estruturas organizacionais pré-existentes.

Dentro do Ibama, os efeitos da perseguição que vem sendo empreendida contra os que cumprem de forma exemplar com suas funções têm sido registrados em depoimentos. Ao periódico Brasil de Fato, um funcionário do Ibama declarou: “Estudei e me formei cheio de esperança. O perfil de quem vai para o serviço público é, muitas vezes, o de alguém mais esperançoso, de quem vê as coisas a longo prazo. Eu me acostumei a esperar mudanças que demoram mais para acontecer e percebi que as coisas são, às vezes, cíclicas, mas eu acreditava, sempre acreditei no trabalho. Hoje, eu me sinto perdido”.

O antídoto do backlash é a transparência e o controle social. Existe uma ligação entre essas realidades dos sistemas ambientais federal e paulista. Elas estão cada vez mais distantes de dinâmica econômica que tende à modernidade, como proposta no cenário dos valores ESG (Environmental, Social & Governance).

Precisamos reavaliar, reconstruir e aprimorar as estruturas de normatização e gestão da área ambiental. É preciso atentar para o fato de que condições, como liberdade profissional para o exercício técnico das atribuições, são a essência do comprometimento, a integridade do compromisso do corpo funcional, com os objetivos aos quais essas organizações ambientais estatais se destinam.

Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

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