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Cada dia é mais comum encontrar consumidores que buscam o café descafeinado, seja por questões de saúde ou por opção. E esse assunto com certeza traz muitos questionamentos quando se fala de café especial.

Café descafeinado a gente sabe que existe, mas por quanto processo químico e nocivo ao próprio grão e à nossa saúde é preciso passar para conquistar esse resultado? E será possível zerar 100% a cafeína de um café?

São muitos os questionamentos que envolvem esse assunto, por isso o PDG Brasil foi direto nas fontes de pesquisa para entender um pouco sobre todo esse processo, mas principalmente sobre os avanços dos estudos e desenvolvimentos nessa área. Continue lendo para entender melhor sobre os cafés descafeinados.
Diferenças de teores de cafeína

Você já deve ter ouvido sobre isso por aí, mas Maria Bernadete Silvarolla, engenheira agrônoma e a pesquisadora científica que coordena o “Projeto Café Descafeinado”, e Júlio César Mistro, pesquisador científico em Melhoramento Genético do Café que atuam juntos no Centro de Café Alcides Carvalho (IAC/APTA/SAA SP), e também o pesquisador científico Gerson Silva Giomo, que atua há 27 anos no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), ressaltam algumas diferenças quanto ao teor de cafeína nos grãos.

Para Gerson, “as espécies Coffea eugenioides, Coffea salvatrix e Coffea racemosa tem menor teor de cafeína que a espécie Coffea arabica. Já o Laurina (que é uma cultivar selecionada pelo IAC e tem o nome de Laurina IAC-870) é considerado de médio teor (em torno de 0,6%), e não naturalmente de baixa cafeína como é comum dizerem por aí”.

Júlio César destaca que “nos cafés blendados arábica junto com robusta, esse percentual é mais elevado devido ao robusta, que possui até 2,4% de cafeína em seus grãos”.

Esses termos são duas coisas diferentes: um café descafeinado, segundo as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), possui em seus grãos até 0,10% de cafeína, e o “low caffeine” (ou “low caf”) possui entre 0,11 e 0,60% de cafeína, esclarece Júlio: “portanto, o café low caffeine nunca poderá substituir o café descafeinado”.

Gerson nos ajuda a entender essas diferenças do ponto de vista das nomenclaturas, e afirma que depende muito do meio onde o assunto é tratado: se envolve mais mercado, ou se é pesquisa, ou se é cafeteria etc.

“Particularmente, prefiro adotar o termo descafeinado quando se trata de café obtido por processo artificial de remoção de cafeína. Já ‘low caffeine’ usaria para classificar cafés que naturalmente possuem baixo teor de cafeína.”

Usando o exemplo do Laurina, que já é um pouco mais conhecido, Gerson conta que “para a identificação e descrição de cultivares de café existem os descritores mínimos recomendados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Conforme esses descritores, cultivares como o Laurina são caracterizados com uma nota 3, que identifica baixo teor de cafeína. Já o naturalmente descafeinado recebe uma nota 1, que identifica teor de cafeína muito baixo.”

Também nos explica que, conceitualmente, não existe nenhum café 100% descafeinado, mesmo aqueles que passam por processo de remoção de cafeína, uma vez que existem limites de tolerância.

“Aceita-se como descafeinado um café que passa por remoção de no mínimo 97% de sua cafeína. Não existe até o momento nenhuma disponibilidade de café descafeinado para cultivo e produção 100% descafeinada desde a lavoura, somente em escala experimental.”

Melhoramento genético do café descafeinado

Na pesquisa de Bernadete, os genes responsáveis pelo controle da síntese de cafeína sofreram alterações espontâneas, fazendo com que seus grãos passassem a ter até 0,10% de cafeína.

“O café colhido dessas plantas já vem do campo com esse perfil químico, dispensando processos industriais de retirada da cafeína dos grãos que são utilizados para produzir o café descafeinado. Seu uso constituirá uma nova opção, tanto para o produtor de café quanto para o consumidor.”

Antes de nos aprofundarmos no projeto, Bernadete conta ao PDG Brasil de maneira simplificada, como é longo o tempo para se desenvolver uma cultivar de café arábica.

“Para que a planta chegue até o cafeicultor, são necessários aproximadamente 50 anos de muita pesquisa. E por que esse tempo? Para entrar no mercado, a cultivar tem que estar geneticamente uniforme, isso é, ela não pode estar segregando. Esse ponto só é atingido na 8ª geração (F8). No café, cada geração leva no mínimo 6 anos”, como vemos na ilustração abaixo.

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Mas há estratégias para tentar reduzir esse tempo em até 15 a 20 anos: “um método que vem sendo estudado é a clonagem, a qual permite você sair de qualquer geração, por exemplo um F1 ou F2, e já atingir a uniformidade genética”, diz Bernadete.

Lembrando que, se alguma adversidade climática (seca, geada etc.) ocorrer neste período de 6 anos entre as gerações, esses 6 anos poderão se estender para 8 ou 10 anos, independentemente se utilizar a clonagem ou não.

Projeto Café Descafeinado

Seu projeto iniciado em 1999 foi pioneiro no mundo, alavancando essa linha de pesquisa até então adormecida.

O primeiro passo foi avaliar 3.000 plantas em uma das coleções do Banco de Germoplasma do IAC, que é o maior banco de germoplasma vivo de plantas de café no Brasil e o terceiro do mundo. Segundo o Portal Coffea, as cultivares desenvolvidas pelo IAC representam quase 90% do parque cafeeiro no Brasil. Essa coleção foi introduzida da Costa Rica em 1970, e até hoje é mantida pelo Centro de Café.

De acordo com dados da Embrapa, o Instituto mantém o maior e mais antigo Banco de Germoplasma – BAG de café do país, com 5.451 registros. Com essa diversidade, contribui para significativos resultados na pesquisa cafeeira há 80 anos.

Amostras de grãos produzidos por todas as plantas dessa coleção foram analisadas no laboratório da Unicamp quanto ao teor de cafeína, sendo que em 2003/2004 foram identificadas três plantas cujo teor de cafeína nos grãos variou entre 0,07 e 0,10%.

Essas plantas foram então utilizadas em cruzamentos dirigidos com cultivares mais utilizadas, tais como catuaí, mundo novo, obatã vermelho, ouro verde etc., visando transferir essa característica para as cultivares mais vigorosas e produtivas.

“Após esses cruzamentos obtivemos inúmeras plantas, as quais fizeram parte da geração F1. Após avaliações de cafeína e de produção dos materiais, avançamos para as gerações F2 e F3, sendo que atualmente estamos avaliando as plantas da geração F3 desse processo.”

“Optamos por aplicar um processo de clonagem (propagação vegetativa) para que se possa antecipar o aproveitamento dos melhores materiais deste F3, que, após sua conclusão, irá resultar em uma cultivar clonal, ou seja, a cultivar não poderá ser propagada por sementes.”

É importante esclarecer que a pesquisa não envolve nenhum tipo de técnica de engenharia genética e muito menos OGM (organismos geneticamente modificados), mas sim o melhoramento clássico, que nada mais é do que fazer todo o processo seletivo no campo, desde os cruzamentos até o lançamento da cultivar.

Resultados do Projeto Café Descafeinado experimentais

Segundo Bernadete e Júlio, a pesquisa até o momento vem satisfazendo o objetivo principal e com ótimas perspectivas para um futuro próximo.

“Em condições experimentais, várias plantas em seleção conciliaram cafeína abaixo de 0,10% (o que as credenciam como cafés descafeinados) com produtividades acima de 28 scs/ha, chegando em algumas plantas até 50 scs/ha. Numa próxima fase, esses materiais deverão ser colocados em competições regionais com as principais cultivares, como catuaí e mundo novo.”

Bernadete acrescenta ainda que o foco da pesquisa desde o início não é desenvolver um material com alta produtividade, mas sim uma planta descafeinada e com bom nível de produção de grãos, gerando lucratividade ao cafeicultor.

Ela informa que esse ano, as plantas descafeinadas já estão em processo de clonagem para então serem avaliadas em experimentos regionais para posterior lançamento. “Este importante passo só está sendo possível graças a um projeto submetido e aprovado em 2020 pela FAPESP, e o Consórcio Pesquisa Café em etapas anteriores, apoiados pela FINEP e a CAPES”, revela Júlio.

O projeto não gerou apenas plantas com cafeína abaixo de 0,10%, mas também plantas com cafeína entre 0,11 e 0,60% de cafeína, o que o mercado considera como low caffeine. Bernadete e Júlio também estão trabalhando nesses materiais, que vêm se mostrando muito promissores nas condições experimentais na cidade de Campinas (SP).

“Acreditamos que este árduo trabalho iniciado pela Bernadete em 1.999 poderá resultar em cultivares descafeinadas e também low caffeine, sendo o IAC e o Brasil como inéditos inovadores nesse tipo de tecnologia”, finaliza Júlio.

O projeto do descafeinado atualmente é conduzido pelos pesquisadores do Centro de Café do IAC Maria Bernadete Silvarolla e Júlio César Mistro. Já a clonagem das plantas vem sendo realizada pela pesquisadora desse Centro, Julieta Almeida.

Mas como fica o sensorial do café descafeinado?

Para Bernadete e Júlio, ainda não há informações concretas sobre o sensorial do descafeinado: “fizemos algumas poucas avaliações que revelaram plantas com grande potencial para a produção de cafés acima de 80 pontos. Isso será mais bem avaliado nos experimentos clonais que ainda serão instalados no final deste ano.”

Para Gerson, depende da composição química e do equilíbrio entre todos os demais componentes do grão, e não apenas a cafeína: fator genético em primeiro plano, mas também o fator ambiental e a interação entre fatores.

“Costumamos dizer que a qualidade do café, incluindo o perfil sensorial, é dependente da interação Genótipo x Ambiente. O que vai determinar os diferentes atributos é a constituição genética das variedades, onde é primordial a origem da variedade, se ela é primitiva, se já foi submetida a melhoramento genético, cruzamentos etc.”

“Em nossas pesquisas conseguimos avaliar bem isso, pois conhecemos a origem e o pedigree de cada variedade estudada. Então observamos que há grande diferença nos atributos sensoriais entre cultivares etíopes, indianas, brasileiras e outras.”

Não se pode esquecer que cada planta tem sua própria constituição genética, que vai se expressar de forma diferenciada em termos de sabores e aromas, principalmente. “Ainda não sabemos nada sobre o que causa essas diferenças na bebida, mas que são diferentes são, e muito.”

Torrefação e aceitação do consumidor

Rafael Pivetta Gavlinski é dono da cafeteria e torrefação Brazuca Coffee Brasil, sediada no Brooklin (SP), uma extensão do projeto Brazuca Coffee, iniciado na Holanda com Tiago André Gavlinski. Rafael já provou e torrou café descafeinado pelo método swiss water “desde a primeira oportunidade”, lembra. “Foi como se estivesse tomando um café cafeinado”, conta.

“Existia na minha cabeça um preconceito, uma impressão de que seria ruim, principalmente considerando os tipos de processamento aqui do Brasil, feitos com produtos químicos que acabam deixando o café flat, sem sabor ou com amargor. Então foi uma experiência bem positiva, com um café swiss water process colombiano.”

Em sua cafeteria, a busca por café descafeinado aconteceu por conta de alguns clientes que habitualmente o consomem e foram propagando a ideia.

“Temos um cliente médico que descobriu metabolização lenta de cafeína em seu organismo, e passou a procurar descafeinados de qualidade. Ele faz drinques funcionais com maca peruana, guaraná cipó e matchá, e opta pelo descafeinado por ser rico em polifenóis e antioxidantes, além de um bom combustível condutor desses outros nutrientes. Ele acaba indicando para os amigos, e por aí vai.”

“Sempre trabalhamos com descafeinado desde a Holanda. O consumo e o interesse por lá são bem maiores. Então temos na operação, com uma saída razoável na cafeteria, mas o forte mesmo é a venda dos pacotinhos.”
“Em cada safra é comprado um café diferente. Esse lote comprado é enviado para o Canadá onde é feito o processo de descafeinização. Temos uma parceria com uma fazenda em Minas Gerais que envia todo ano um contêiner, pois existe uma quantidade mínima de umas 40 sacas para que o processo seja feito na Swiss Water Company. Por isso, a cada safra temos apenas um café disponível.” O atual é um Icatu. O pacotinho com 200 g sai por R$ 49.

O processo de torra para um café descafeinado é o mesmo do que para um café com cafeína: mesmos cuidados e passos como cupping, análise sensorial, ajuste de perfil de torra e por aí vai até atingir o melhor daquele café específico.

Rafael conta que na cafeteria os clientes querem entender melhor sobre como funciona o processo de descafeinização natural porque todo mundo acaba gostando bastante. Em geral, nos questionam buscando entender e aprender sobre todo esse processo”, por isso no site da Brazuca existe uma aba explicando didaticamente como acontece a descafeinização do café por eles torrado e comercializado.

O futuro do mercado do café descafeinado

É unânime a opinião de nossos entrevistados sobre o futuro para o café descafeinado especial: ele atenderá o público que ama o café, mas devido a questões de saúde ou por opção, ainda há muito espaço a ser conquistado aqui no Brasil.

Bernadete e Júlio reforçam que já há o café descafeinado disponível no mercado, porém é obtido mediante processo de descafeinação via água ou diclorometano.

“Em ambos os casos há vantagens e desvantagens ambientais, econômicas (principalmente para a indústria brasileira, devido ao alto custo de envio para descafeinar o grão fora do país), e com algumas perdas na qualidade sensorial do produto na xícara”, afirma Júlio.

“Considerando café de qualidade, atenderemos muita demanda do público que é metabolizador lento de cafeína, ou gestantes e lactantes, e pessoas que querem mesclar com o consumo do café cafeinado. Por isso acredito que ganhará cada vez mais espaço, até porque percebemos durante a pandemia um aumento considerável de seu consumo”, comenta Rafael.

Já podemos esperar o que o futuro nos reserva e provar sem medo os cafés descafeinados que surgirão nas gôndolas nos próximos anos. Os pesquisadores não conseguem estimar esse prazo, pois depende de questões imprevisíveis, como as climáticas, por exemplo.

Mas é fato que poderemos encontrar cafés especiais 100% descafeinados no mercado cafeeiro futuro, e sem uso de procedimentos industriais de descafeinização, ou seja, direto da lavoura para a xícara. Então não haverá mais desculpa se vai estar cedo ou tarde, atrapalhar ou não o sono, para degustar doses incríveis de cafés a qualquer hora do dia e da noite, até para os coffee lovers mais sensíveis.

Fonte: PDG Brasil

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